Sobre filhos, consentimento e empatia

Quando comecei a frequentar o mundo dos casais liberais a coisa que mais me impressionou nem foi o sexo, mas os códigos de conduta que organizam essas relações. Nesse meio “não é não” e o sim é mais que benvindo. O consentimento é acordado entre as partes, sempre e a cada vez. A empatia uma constante. Muito do que é praticado nas alcovas das casas de swing deveria ser lembrado aqui fora.  E não somente entre nós adultos, mas sobretudo no trato com as crianças.

A questão do consentimento e da empatia são recorrentes nas fantásticas animações de Michel Ocelot (1943, França) como em Kiriku e a Feiticeira (1998) e Príncipes e Princesas (2000). No primeiro, aprendemos a respeitar um pequeno grande herói e a termos empatia por uma vilã que… Bem, digamos apenas que tudo se explica no final. Já no segundo, e esse vou contar, o castelo da bruxa é alvo de diversos ataques infrutíferos. Todos os homens do reino querem entrar e não conseguem porque… Nunca cogitaram pedir permissão.

Kiriku e a feiticeira, Michel Ocelot, 1998.

Quem dera a vida imitasse os finais felizes da ficção. Seguimos invadidos e invasores. Vítimas e algozes. Dizemos minha manicure, meu médico, minha esposa, meu esposo, meus filhos. Com a mesma desfaçatez com que falamos de uma bolsa, de um objeto. Num dos episódios de Os Simpsons, em que Bart pede a emancipação dos pais, Homer resume filosoficamente a questão: até os 17 anos os filhos lhe pertencem. Mas… Se o objetivo primeiro da parentalidade é ver os filhos crescerem, porque muitos parentais não suportam ver os filhos se tornarem indivíduos?

Eu não sei mas…

Deixa eu te contar uma coisa sobre a minha vida offline. Eu e o Roger buscamos viver uma relação amorosa e não mais que isso. Eu não sou dele e ele não é meu. Procuramos evitar expressões como meu marido, minha esposa. Acreditamos que os filhos merecem o mesmo status: são deles mesmos, não nos pertencem. Por isso ando meio ressabiada por ainda falarmos sobre nossa filha e temos procurado internalizar alternativas. Aos quase 9 meses, Ayo não é nossa. É uma pessoa, um corpo, uma personalidade. E isso envolve questões de consentimento e empatia.

Não, não estou dizendo que os filhos podem tudo. O que estou dizendo é que os pais também não podem tudo. Que o limite é o outro. Que existe um breve momento em que, por questões de sobrevivência, parentais e filhos se confundem na mesma pessoa, no mesmo corpo. Mas isso tende a acabar a medida em que os filhos oxalá crescem. Aliás, eu diria que a mágica acontece desde o momento em que nascem. Ali já existe alguém. É alguém que ainda tem carinha de joelho, que não fala nosso idioma, que precisa de nossa proteção mas… É alguém.

Por simetria, do mesmo modo que os filhos não nos pertencem, nós parentais também não pertencemos a eles. Nos dedicamos por um tempo, desejamos o melhor, fazemos das tripas e o coração. Tudo nos limites do consentimento e da empatia. Antes de sermos pais e mães somos literalmente muita coisa. E isso não deve ser colocado a mercê dos outros, ainda que os outros sejam os filhos. Eles crescem para que nós possamos viver nossas vidas. Vidas que não se confudem, apenas se tangenciam.

É nisso que acreditamos aqui, Roger e eu. Por isso decidimos finalmente ter filhos. Mas… Nem tudo são flores e há momentos em que esquecemos tudo isso. Sim, esquecemos. Meu marido e eu. Há momentos em que sou esposa dele. Que a gente fica bravo por que a Ayo não quer fazer ao nosso modo e semelhança. Que a gente fica feliz por ela gostar das mesmas coisas que a gente. Que morremos de medo de ela fazer diferente. Que tudo vira de cabeça pra baixo e é preciso relembrar tudo outra vez. De novo. Eu, Ele e Ela.

Bem, chegou a hora de dizer que esse post não tem respostas. Apenas quis dividir com vocês um pouco de minhas inquietudes. E confesso que me sinto um tanto confortável assim, cheia de perguntas até o talo. Enquanto isso, peço sua opinião a respeito. Você também já pensou nisso, já viveu coisa parecida ou procura viver? Como é a sua relação com seus (opa) filhos e seus namorados, maridos, companheiros? E pra terminar, deixo um beijo, um abraço, um aperto de mão e uma foto da gente.

Até o próximo post.

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17 respostas para Sobre filhos, consentimento e empatia

  1. dehcapella disse:

    Ah, texto fenomenal, gostei demais. :***

  2. Juliana Higa disse:

    Olá charô!
    Lindo post e ótimas dicas também. Trabalho em uma escola democrática e videos como estes são uma constante, sempre bom ter novas indicações.
    Quanto a última pergunta, já nos questionamos sobre isso (aqui somos dois, eu e ele) e procuramos nos apresentar a terceiros como companheiros, principalmente para tirar o estigma de esposa e marido, muito vinculado ao casamento, a igreja, etc. etc., instituições e tradições que somos visceralmente contra.
    Quanto ao termo de pertencimento, é algo difícil de tirar do vocabulário, o que colocar no lugar??? ” este é ____ companheiro (a)”…? neste caso, a língua portuguesa parece estar limitada ou eu, talvez.
    de qualquer forma, acho que consciência faz as mulheres e os homens e mesmo usando os pronomes possessivos, por enquanto é o que temos e usamos de forma consciente.
    bjs!

  3. Pamela disse:

    Às vezes fico questionando como a gente é egocêntricx, como vemos (possíveis) filhxs como miniaturas de tudo o que gostamos. Não tenho filhxs e acho a educação emancipadora MUITO importante e bem complexa, adorei esse cuidado que vocês, como pais, procuram ter com os detalhes.
    Assim como a moça de cima, também procuro apresentar meu (socialmente conhecido como) namorado como companheiro, mas também não encontro um substituto para o pronome possessivo.
    Adorei o texto! E ~~sua~~ filha é LINDA.

  4. Charô disse:

    Obrigada pelos comentários. O assunto é complexo, deve ser abordado sempre, sempre, sempre. E seguimos buscando alternativas. Uma beijuca. =)

  5. gilsonmhjr disse:

    belissimo texto, obrigado.

  6. Amanditas disse:

    Ai, Charô… Ser mãe traz todos esses questionamentos internos – quer dizer, eu acho, né… Porque eu tenho as mesmas inquietudes que você tem. Porque os filhos estão ali sempre nos mostrando os limites das coisas, eles correm perigosamente, querem brincar na água gelada até ficarem gripados, e a gente fica sempre pensando se interferiu cedo ou tarde demais… Complicado… Mas é bonito! É bonito quando a gente se dispõe a permitir que um filho nos transforme a nós mesmos e nós um pouco a eles 😉

    • Charô disse:

      É bonito sim e traz uma preocupações enormes né, mas até aqui tem sido gostoso. Sobretudo porque tenho uma dupla de “colaboradores”… Vovô e vovó. Que atrapalham, mas também ajudam pra xuxu. Beijuca e obrigada pelo comentário!

  7. Ai, adorei o texto! Tenho inquietações bem semelhantes que não costumo exteriorizar. Tenho bem pouco sentimento de posse, inclusive mesmo com meus filhos, o que é tido como desamor. Não sei onde aprendi isso, não sei se do fato da minah mãe trabalhar fora e ser independente, inclusive do meu pai( aí por questões diversas, ele era desligadíssimo e bem umbiguista, por assim dizer) , quer dizer na hoar do pega-pra-capá meu pai tava ali, nas questões do dia adia, nem sonhando… Nunca os vi tendo crisis de ciúmes, então, não aprendi os ciúmes, não o internalizei tanto assim, não internalizei a posse sobre o outro. Quando tive ciúmes foi rápido compreender que era uma insegurança e um medo meu, se havia risco real do outro ir embora? äs vezes houve, mas faz parte, ninguém é de ninguém.
    Me espanat me dizerem que meus filhos cuidarão de mim na velhice ( sabe-se lá? terão tempo? disponibilidade? quero isso?) não crio filho par ser meu enfermeiro. Acho complicada essa relação com as palavras meu-minha. Quando eu morrer o que será meu? Então, tenho as mesmas inquietações, mas nenhuma resposta pronta. Só sei que gosto de viver assim. Adorei ler seu texto.

    • Charô disse:

      Obrigada pelas palavras. Lembrei de que eu mesma fui criada para trazer conforto material para meus pais. Se danaram né, porque eles me deram educação e eu nunca fiz questão de transformá-la em grana. O bom foi que eles perceberam isso com o passar do tempo. Um abraço!

  8. Barbara Manoela disse:

    Charô, dizer que eu amei o texto é redundante. Dizer que quero discutir com vc, pessoalmente, essa questão do pertencimento também. Então, digo que se a Ayo é do mundo, logo ela também é minha, ebaaaaaa!!!!
    beijos e amor
    Barbara Manoela

    • Charô disse:

      Sim, ela é do mundo e é um pouquinho sua também. Ou não. Brincadeirinhaaaaa. Sempre digo, em tom de galhofa, que ela terá quantos namorados quiser. Aproveito essa coisa doentia de as pessoas arrumarem namorados para as crianças e perverto ao (nosso) favor. Digo que ela já tem uns 5 namoradinhos… Povo arregala os zóios, eu dou risada.

      Conversar pessoalmente? Bora sim. Marque um brunch que tou dentro. Sou uma pessoa diurna ^^ Beijucas!

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  10. Adorei o texto, sou mãe de primeira ( e espero que única) viagem 🙂 Tenho um pequeno de 01 ano aqui em casa, estávamos (eu + marido) pensando nessas questões de pertencimento em relação ao Apolo e decidimos que vamos fazer o nosso possível, porém o que ele quiser para a vida dele cabe a ele decidir, por exemplo não temos expectativas profissionais para ele, “Quero que ele seja médico…” Ele vai ser o que ele quiser, lógico que eu queria que ele fosse Assistente Social como a mamãe e fizesse visita familiar comigo, porém não posso controla-lo, apenas mostrar o leque de opção de a vida apresenta e sempre sempre apoia-lo.
    No comentário em que disse ser uma pessoa diurna, achei um barato pois depois do nascimento dele comecei a apreciar os “rolês diurnos” e achei melhor do que a sombria noite.
    Td de bom para a família 🙂

  11. Marina Hedwig disse:

    Gostei muito do seu texto, não por ele lançar respostas, mas pq abre outras formas de se pensar, compartilha uma questão que é comum: a questão do ciúme, pois no fundo vc aborda esse sentimento e o aborda por outro víeis, sempre pensamos que devemos controlar nosso ciúmes e coisa e tal, mas a questão é repensar o sentimento de posse que causa esse ciúme, essa ideia que os outros nos pertencem, essa necessidade de suprir nosso vazio com o outro, pois não é isso que fazemos quando tomamos o outro como nosso? Tentamos atribuir sentidos para nós a partir do outro, e por isso da necessidade de ter, possuir, garantir que não perderemos algo que nos dá sentido, sem se importar se o outro quer ocupar esse lugar. Enfim, gostei muito do texto, instigou questionamentos…
    ps. Linda família!

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