Corpo

Um corpo. Meu corpo, já andei dizendo e não me esquivo. O corpo é meu, eu decido. Mas é ainda mais. O corpo sou eu. Nem devia esclarecer, mas me antecipo: meu corpo sou eu, mas eu não sou meu corpo. Melhor: não sou só meu corpo. Mas ele me é. Encontro nele aquela gargalhada longa no escuro do cinema: tá ali, risquinhos no cantinho do olho, feito arabescos. Encontro as longas conversas entremeadas de cerveja com os amigos queridos, aqui, na curva da barriga. Encontro o prazer da mamada segura do meu filho nos seios maiores que me deixou. Encontro a preocupação com as contas da casa, com o trabalho, com a saúde da família, aqui, nos fios brancos que dão diversidade aos cabelos. Encontro o gozo das mãos de homem que o reinventaram em contornos. Encontro as descobertas da infância, ali, no olhar encantado. As aventuras de sempre, os medos de nunca. O tempo se faz corpo. O corpo se faz quando. Um corpo se sabe mapa de indicações de futuro.

 Se cabem metáforas, eu diria que o corpo é como uma cidade que visitamos. A moral predominante, que não pode negar a sexualidade, mas insiste em escamoteá-la, logo nos oferece os pontos turísticos. Muita visibilidade, garantia de satisfação rápida e um distanciamento necessário: não podemos conspurcar. É preciso preservar o corpo, digo, a cidade, e haja restauração. Só a perfeição é aceitável. Mas daí você se perde do grupo e descobre novos trajetos, passagens menos visitadas, aquele café simpático, uma arquitetura surpreendente numa rua meio deserta, um prédio antigo e de pintura gasta e tão charmoso. Você faz uma ronda completa e vai percebendo que há sempre mais a descobrir. Novas paisagens, novos prazeres. Que aqueles lugares distantes também se fazem em encanto. Você questiona as opções óbvias. Você se torna responsável pela sua viagem. Você escolhe os roteiros, os caminhos, os lugares de pouso. Você se permite, se autoriza e se reconhece: a cidade é o olhar que você lhe dirige.

 Biscatear é amar o corpo porque se ama o que ele aponta: o passar dos dias. É não negar o tempo e suas inscrições. É decifrar as marcas. É usá-las como guia de viagem. Biscatear é tocar o próprio corpo com a intimidade que se reserva aos mistérios. Biscatear é desvendar o corpo e reconhecer: alegria. É oferecê-lo sabendo que se recebe. Biscatear é desejar e sentir o corpo em antecipações. É ali, no corpo e para além dele, o prazer. Biscatear é saber espelhos, mas preferir encontrar-se no olhar do outro. Biscatear é reconhecer que o corpo é quem somos e não demandar dele menos ou mais do que o que vivemos.

Meu corpo sou eu e, nele, a vida. A minha.

Sobre Borboletas nos Olhos

É melhor morrer de vodka do que morrer de tédio, disse Maiakovski. Brindo a isso enquanto acontecem-me coisas surreais. Segue o meu perfil quando me vejo assim: cara a cara comigo mesmo. Ou seja, meio de lado. Um mosaico com rachaduras evidentes. Nostálgica, mas disfarço com o riso fácil. Leio de tudo e com desespero. Escrevo sem vírgulas, pontos ou educação. Dou um boi pra não entrar em uma briga, o resto já se sabe. Considero importantíssimo saber rir de mim mesma. Nem que seja pra me juntar ao grupo. Certa da solidão, fui me acostumando a ser boa companhia. Às vezes faço de conta que sou completa, geralmente com uma taça na mão. Bebo cerveja, bebo vinho e, depois das músicas italianas, bebo sonhos. Holanda, por parte de mãe e de Chico. John Wayne, por parte de pai. Borboleta e Graúna por escolha e história. Tenho uma sacola de viagem permanente no meu juízo e a alma, de tão cigana, não para em palavra nenhuma. Gostaria de escolher meus defeitos, mas não dando certo isso, continuo teimosa. Não sei usar a nova regra ortográfica. Nem a velha, talvez. Amo desvairadamente. E tento comer devagar. Sei lá, pra compensar, talvez. Tem gente que tem a cabeça no mundo da lua. Eu não. Quando vou lá, vou toda. Sou questionadora, mas aceito qualquer resposta. Aspecto físico? Língua afiada e olhos cor de saudade. Gosto de fazer o que eu gosto. No mais, preguiçosa. Sabia o que é culpa, mas esqueci. Nada mais a dizer, prefiro andar de mãos dadas. E dormir acompanhada. Mas, bom, bom mesmo é sal, se você já leu Verissimo.
Esse post foi publicado em Corpo e Alteridade, sussurros e gemidos e marcado , , , , , , . Guardar link permanente.

14 respostas para Corpo

  1. Beto Mafra disse:

    Lindo!
    Suave e circular, como é a vida, biscate do universo.

  2. Flávia Cera disse:

    Que delícia de texto =)

  3. Fiquei pensando muito nesta frase “mas não sou só meu corpo”. É algo que me incomodava muito há um tempo atrás, pois me sentia tendo que provar o tempo inteiro que não sou só meu corpo.
    Hoje sou biscate e não preciso provar mais nada.
    Beijinhos

    • Luciana disse:

      Isso, Anne. Não precisamos provar nada. Mas também, acho, que tem umas coisas que não devemos esquecer. Que somos o corpo é uma delas.

  4. MULHER DE VERDADE…
    Qual é a mulher de verdade? Aquela capa de revista perfeita, teoricamente irretocavel? A que vemos na televisão diariamente, sempre maquiada, bem produzida? Enfim, como definir a mulher de verdade?

    Ah! Essa é fácil, a mulher de verdade não precisa de retoques, ela pode não ser perfeita como a capa de revista, mas ela tem a sua perfeição, possue seu encanto, todas as mulheres o possuem, principalmente as de verdade que reúnem qualidades que nos fazem virar a cabeça sempre que passam.

    Toda mulher tem seu encanto, pode ser um jeito de olhar, o tom da voz, a maneira como se porta em público, o jeito como lida com as pessoas, enfim, vários encantos que fogem ao lugar comum da beleza puramente plástica.

    Uma mulher de verdade, sabe a hora de ser mulher, de se portar como mulher, e a hora de agir como uma menina, brincar, rir, divertir-se… a mulher de verdade não tem medo de voltar a ser criança por alguns instantes e libertar-se da ditadura da beleza. Ela pode tomar chuva, andar descalça carregando os sapatos nas mãos e ao invés de amaldiçoar o temporal, divertir-se com a situação.

    Uma mulher de verdade sabe que cuidar-se não significa estar sempre impecável como as atrizes na televisão, ela sabe que mesmo com sua camiseta surrada, o cabelo preso, a calça de moletom velha, ela é uma mulher, e se porta como tal, ela sabe se movimentar com o salto ou as pantufas… a mulher de verdade sabe.

    Todas tem encantos… todas merecem respeito, admiração, imaginem como a ditadura da beleza as atinge em cheio e as cerca com comparações, nada de “photoshop”, a mulher de verdade se ela está com você realmente, e você com ela… já será perfeita.

    Enquanto elas podem dizer que homens mais velhos são como vinho, nós podemos dizer que elas são como um champagne raro, que mantém seu frescor e jovialidade com o passar do tempo.

    Elas (as mulheres de verdade) são perigosas… e elas sabem disso.

    Sim, perigosas, elas sabem conquistar, sabem ocupar seu espaço, e se forem tão companheiras quanto boas “conquistadoras” nenhum território resistirá aos seus encantos. A mulher de verdade, assusta os menos preparados com a sua independência, sua firmeza de caráter e opinião, ela não se deixa levar por modismos quando o assunto é o relacionamento.

    Buscar a mulher perfeita pode ser utópico, tanto quanto o “par perfeito” que eu já citei em outro texto, mas para quem aprendeu a admirar estas criaturas que entre tantos dons tem o de gerar uma vida dentro de sí, ficar impassível diante daquela que te faz virar a cabeça é uma tarefa grandiosa demais. E ela certamente o sabe.

    Quando for buscar a mulher perfeita, pense que ela pode não estar no pôster, ou por trás daquele sorriso que encanta à todos, mas saiba que na hora certa são elas quem saem com a caça… e para não cair nas armadilhas delas, só tem um jeito, viver dentro de um cofre, e ainda assim você sabe que elas descobrem o segredo.

    A mulher perfeita não se faz perfeita, ela é em sua essência e simplicidade, dona de uma beleza que pode não saltar aos olhos, mas que com certeza aguça e provoca os sentidos, da brejeira e simples menina do interior, as mulheres da cidade grande, “gatas” de praia, não importa, a mulher de verdade se sobressai na multidão, não é uma roupa, um perfume, um corpo apenas, é o conjunto da obra, de uma obra de arte.

    Como diria Michellangelo referindo-se à um bloco de mármore bruto, “…a obra de arte está aí, é só retirar o excesso…” resumindo, a mulher de verdade vem sem os excessos.

    Quando um homem sabe reconhecer uma mulher de verdade, quando está aberto aos encontros e desencontros, ele observa, ele ouve, ele analisa… pode parecer frio, mas quando ele encontra ou ao menos imagina que possa ter encontrado uma “mulher de verdade”, ele jamais irá aproximar-se de maneira afoita, ou deixando bem claro que ele se interessou, ele vai deixar os elementos e os fatos à sua volta corroborarem ou não esta descoberta. Se ela for dona desta maturidade… desta condição especial… só uma decisão errada poderá transformar este encontro em desencontro. E esta condição, vale para ambos.

    A mulher de verdade separa aventuras de oportunidades reais, ela tem maturidade e nas suas decisões, encanta e conquista.

    E para finalizar… sou louco por elas, com ou sem excessos, todas são cada qual à sua maneira, uma obra de arte, merecem nosso respeito e admiração, ocupam seu espaço muitas vêzes sem alarde algum, e trazem para o nosso mundo aquela sensibilidade que nos falta, a arte não precisa ser explicada… .

    (esta poderia ser uma conversa de bar com amigos, uma constatação que surge em alguns momentos de conversa durante uma festa, um encontro, mal sabem elas que as opiniões vão muito além do óbvio, todo homem quer uma mulher de verdade, e toda mulher de verdade quer um homem que entenda isso… neste caso a recíproca sempre será verdadeira) a ditadura da “estética” atinge homens e mulheres, mas a maturidade é que determina quem vê além da superfície e quem sabe o que quer.

    ( RESUMINDO… A BISCATE É UMA MULHER DE VERDADE, MAS QUE NÃO TEME O RÓTULO PORQUE SABE RECONHECER ESTA CONDIÇÃO, AINDA QUE MUITAS ASSUMAM SEU LADO BISCATE SOMENTE ENTRE QUATRO PAREDES, COM CERTEZA O DESEJO DE SER ASSIM DESEJADA MESMO QUE SOB O DISFARCE DA HIPOCRISIA SOCIAL FICA LATENTE) GOSTEI DOS TEXTOS…

    • Luciana disse:

      Obrigada, caro, pelo elogio ao texto e pelas belas palavras. Concordo com muito…só tenho uma implicância com o termo “mulher de verdade”, é que não conheço uma “de mentira”. Acho que todas, biscates ou as que não conseguem ser, as desembaraçadas dos ditames da estética ou presas a ele, somos todas mulheres. Só acho que quanto mais livre, mais feliz.

  5. As biscates, desde muito, tiram os homens do seu eixo, do lugar em que repousam tão confortáveis..
    “Será o corpo uma prisão? Eu acho que sim você finge que não…” (Gessinger, 1987).

    A biscate-lírico nos mostra muito bem o que e como é o corpo…
    “Biscatear é saber espelhos, mas preferir encontrar-se no olhar do outro. Biscatear é reconhecer que o corpo é quem somos e não demandar dele menos ou mais do que o que vivemos.”
    Nós homens temos muito o que a aprender com as biscates…
    Libertá-las de nossos preconceitos, para nos libertarmos, é um bom primeiro passo.. nos libertarmos de nós mesmos. Porque a vida sem machismos… bem, é mais cheia de biscates!

    Me permito ir além no entendimento da metáfora corpo-como-cidade: o corpo é como o burgo, onde as chaves dos portões por que se penetram as muralhas são suas… e com elas fazem revolução, burguesas de si mesmas.

  6. Dandi Marques disse:

    Este texto me deu vontade de fazer amor, reinventar curvas e doar-me no corpo a copor. É me um grande mistério terem feito disso um abismo, pois amar é completude quando se derrama em sexualidade, e a entrega revela o olhar do outro que se torna reflexo do que realmente vemos. E isso tudo é Lindo! e só gente de verdade pode desfrutar.

    Qual seria o masculino de biscate? Não importa. Me aceito orgulhosamente um biscate. 🙂

  7. Pingback: Sexta-Feira 13, dia oficial da Biscate |

  8. Pingback: Profana | Biscate Social Club

Deixar mensagem para Luciana Cancelar resposta